Com uma carreira que abrange décadas e uma base de fãs leais em todo o mundo e, em especial, no Brasil, o Sisters of Mercy continua a atrair multidões sedentas por suas melodias melancólicas e letras profundamente poéticas. Antes da aguardada sétima vinda da banda ícone do rock gótico ao país, para única apresentação em São Paulo no próximo dia 18, tive a oportunidade de conversar com o talentoso guitarrista Ben Christo, que compartilhou suas expectativas para esse retorno e ofereceu insights fascinantes sobre cada um dos álbuns de estúdio lançados pelo grupo.
Boa leitura!
Transcrição: Bia Cardoso
Fotos: Divulgação (banda) e Gustavo Maiato (Ben Christo)
O Sisters of Mercy é um dos nomes mais icônicos do rock gótico, um gênero cujo ápice se deu na década de 1980. Como é fazer parte da banda e ser um dos responsáveis por manter a chama desse gênero acesa tantos anos depois do seu ápice?
É uma grande honra. Eu já era fã da banda [antes de me juntar a ela], então meio que sei o que os fãs querem ouvir, tanto nas músicas novas quanto na forma que as antigas são tocadas. Sinto que no comecinho eu errava um pouco a mão, tocava de um jeito mais metal do que deveria. Hoje, sou muito mais atento. E é aquilo: tudo que é bom sobrevive ao teste do tempo. Prova disso é que muitas das bandas que cresci ouvindo cresceram ouvindo o Sisters. Fazer parte de uma banda que os caras do Soulfly, do Cold e do Lamb of God ouviam desde cedo tem sido mágico.
Você tocou com outras bandas antes de entrar no Sisters of Mercy. Fale um pouco sobre sua carreira anterior ao Sisters e como foi se juntar a uma banda com uma história tão rica e uma base de fãs tão leal.
Toquei em algumas bandas ao longo da minha adolescência e na juventude. Fiz meu primeiro show com 10 ou 11 anos, mas a primeira banda minha que realmente fez algum barulho foi o AKO [1998-2005]. Lançamos discos [o álbum “Find Youself” (2001) e o EP “Tomorrow Night’s Regret” (2002), ambos independentes]; fizemos turnês abrindo para bandas como Avenged Sevenfold, Stiff Little Fingers e Stone Sour; chegamos a tocar para 40 mil pessoas na nossa cidade natal; e fui entrevistado por algumas revistas especializadas em guitarra. Lá pelas tantas, o empresário do Tony Iommi, do Black Sabbath, demonstrou interesse no som e fez a ponte para que Bob Marlette, que trabalhou com o Rob Halford e o Alice Cooper, produzisse o nosso segundo álbum. Ficamos superempolgados, mas aí veio o 11 de Setembro e a ideia foi engavetada. Mas nem tudo foi fracasso: além de ter podido entrevistar o Tony Iommi para o meu TCC, fui presenteado com um velho amplificador que pertenceu a ele, com queimaduras provavelmente causadas por alguma pirotecnia. [Risos.]
Acho que isso me preparou bem para o Sisters, porque, quando me juntei à banda, já tinha bastante experiência no trabalho de bastidores. Na época do AKO, fazíamos tudo sozinhos; contatos, divulgação, etc. Senti na pele o que significava fazer as coisas acontecerem. Ademais, eu não era um nome conhecido na cena, então foi relativamente “fácil” para mim me estabelecer na banda. Não tinha nenhuma expectativa, né? Imagina se fosse o Kirk Hammett [Metallica]? As pessoas logo se perguntariam: “O que é isso? Uma colaboração?”. [Risos.]
Toda mudança desperta comentários depreciativos – e eu até entendo alguns que foram feitos na época, pois demorei a me encaixar no perfil da banda. Dito isso, a maioria dos fãs foi muito legal comigo desde o início, e sinto que hoje a banda está muito mais perto do que as pessoas esperam que ela seja.
Em minha resenha do show no Rio de Janeiro em novembro de 2019, escrevi: “Nem o telão é mantido aceso. O pouco que ilumina o palco são feixes coloridos vindos de baixo para cima. A fumaça é uma constante”. Foi muito difícil pegar o jeito de tocar em um palco completamente escuro? [Risos.]
Temos nossos “macetes” para tocar em palcos completamente escuros, como marcações brancas na escala da guitarra para enxergarmos os trastes [no braço do instrumento]. Mas na maioria das vezes nem sequer olhamos para a guitarra; mantemos nossos olhos fixos no público, nos envolvemos numa troca de energia com ele. Dito isso, temos luzes de palco agora, muitos contrastes entre luz e sombra, o que permite uma conexão ainda maior com o público. Além disso, nos possibilita ser ou não ser vistos quando bem entendermos, e tem algo de poderoso nisso.
Apesar de curta, a discografia de estúdio do Sisters of Mercy é composta por títulos míticos que são objeto de culto para os fãs de rock gótico. Gostaria que você falasse um pouco sobre os álbuns “First and Last and Always” (1985), “Floodland” (1987) e “Vision Thing” (1990).
Só fui ouvir o “First and Last and Always” em 2002, e fui imediatamente cativado, porque, embora não seja tão bem-produzido como os álbuns posteriores, sua crueza é responsável por uma atmosfera única. As letras e os vocais são viscerais, e há toda uma teatralidade por trás das imagens evocadas e do conteúdo ambíguo do que é cantado. “Black Planet”, “A Rock and a Hard Place” e “Amphetamine Logic” são as três faixas que se destacam para mim. Tocá-las ao vivo é como voltar vinte anos no tempo, para o dia em que as ouvi pela primeira vez. Por isso, é um álbum muito especial, apesar de eu reconhecer que não é o melhor trabalho da banda. Nunca gostei muito de “Some Kind of Stranger” e “Possession”, embora entenda por que as pessoas gostam delas. Sei que são muito importantes para muitos fãs. Além disso, a quantidade de pessoas que conheci ao longo do meu tempo na banda que batizaram suas filhas de Marian é incontável [Risos.]. [O ator] Simon Pegg recentemente disse que “Marian” era a música que ele levaria para uma ilha deserta, e Randy Blythe, [vocalista] do Lamb of God, disse-me de forma muito clara que a introdução de “Memento Mori” era uma pequena homenagem a “Marian” e ao Sisters.
Nunca mergulhei de cabeça no “Floodland” porque, na época, eu tinha o “A Slight Case of Overbombing” (1993), que é uma coletânea, e tinha a versão de 1992 de “Temple of Love” e também [a inédita] “Under the Gun”, que para mim é uma das músicas mais incríveis do Sisters. Um adendo: no dia 23 de maio, tocamos no Hollywood Palladium [em Los Angeles] e Terri Nunn [vocalista do Berlin] subiu ao palco para cantar “Temple of Love” conosco, no que considero um dos momentos mais incríveis da minha carreira. A comoção foi tamanha que as pessoas levantaram seus celulares e começaram a registrar. Simplesmente maravilhoso. Mas voltando ao “Floodland”, eu amo “Lucretia My Reflection” e “Dominion”, mas nunca curti “This Corrosion”, que sempre achei meio boba – mas agora sei que essa era a intenção do Andrew [Eldritch, vocalista e líder da banda], a de escrever algo intencionalmente bobo que tirasse sarro da superficialidade da indústria musical. No fim das contas, acabou fazendo um enorme sucesso, status que se mantém até hoje. Por conta disso, “Floodland” é, sem dúvida, genial, e traz outras músicas incríveis, como “Driven Like the Snow” e “Never Land”, ambas tão épicas quanto subestimadas.
“Vision Thing” foi o primeiro álbum que ouvi do Sisters, e só quatro anos depois de seu lançamento. A música “When You Don’t See Me” encapsula meu amor pela banda; é bem-produzida, alto-astral e possui uma letra inteligente e enigmática que me acertou em cheio quando eu tinha 14 anos. Acho que ter descoberto o Sisters na adolescência foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo. Também amo “Ribbons”, e a versão do álbum é tão densa... a maneira como a introdução vai se desenvolvendo... uma verdadeira obra-prima. “More” é outra música incrível, bem como “I Was Wrong”, e o fato de termos incluído essa no setlist e o Andrew ter muito gentilmente me deixado dividir os vocais com ele é muito especial. E, por mais herege que possa soar, nunca curti muito a faixa “Vision Thing” em si. Sempre a enxerguei como um pastiche de punk rock, além de achá-la meio repetitiva. Hoje percebo que foi uma maneira de o Andrew canalizar sua raiva e expressar sua indignação por meio de algo totalmente poético e à frente do seu tempo, mas continuo não vendo muita graça. E “Something Fast”, sobretudo na seção final em que [a cantora] Maggie Reilly faz as harmonias adicionais, é estrondosa, fantástica.
A banda tem muitos fãs leais no Brasil, talvez mais do que em qualquer outro lugar do mundo. Como é o relacionamento com os fãs daqui e o que eles significam para a banda?
Gostamos muito de tocar na América do Sul. Os fãs são muito apaixonados, leais e dedicados. É o único lugar no mundo em que me sinto um rock star [risos.]. Tipo, sempre tem fãs nos esperando no aeroporto, e, de alguma forma, eles descobrem em que hotel estamos e batem ponto no lobby para conseguir fotos e autógrafos. Quando nos veem na rua, começam a gritar. Essa paixão é muito bonita e inspiradora, e talvez se deva ao fato de que há uma escassez de shows internacionais na América do Sul – além de esses shows serem muito caros, o que obriga as pessoas a economizar para comprar os ingressos. Como não valorizar isso ao máximo? Somos muito, muito gratos por todo esse apoio e todo esse amor.
O que podemos esperar da turnê no Brasil? Haverá alguma novidade ou surpresa para os fãs brasileiros?
Estamos no meio de uma grande turnê pela América do Norte e queremos levar essa energia para o Brasil. O setlist está fantástico; uma mistura de grandes hits com lados B e músicas novas das quais estamos muito orgulhosos e acreditamos que todos irão gostar. Temos conversado sobre incluir novidades para os shows na América do Sul, mas não sabemos ainda, então vamos esperar para ver.
Qual é a mensagem que vocês pretendem transmitir através da música do Sisters of Mercy e o que lhe parece tão singular a respeito dela, no sentido de que dialoga com as emoções e sentimentos de quem a ouve?
Acho que o Sisters é uma banda muito especial por ser muito inclusiva. Nossa banda é um porto seguro para qualquer um que esteja passando por uma situação desagradável na vida, ou que esteja se sentindo um peixe fora d’água ou tentando superar um trauma. Acreditamos que nossa música é para todos, e nosso objetivo é ajudar aqueles que sentem que não têm para onde ir; que foram, de alguma forma, marginalizados pela sociedade. Isso é particularmente bom num contexto pós-pandemia. Nosso público LGBTQIAPN+ aumentou nos últimos tempos, e sinto que essas pessoas têm sido capazes de se expressar muito mais livre e abertamente, o que é incrível. É lindo ver tamanhas aceitação e fluidez. Nosso público tem gente de todas as idades, raças e pessoas oriundas de diversos subgêneros da música – punks, metaleiros, fãs de pop, góticos... de tudo um pouco. Não vejo esse tipo de inclusão na maioria das outras bandas, mesmo as grandes. Bandas de metal geralmente vão focar nos metaleiros; grupos pop, nos fãs daquele estilo. Nós, não. Nós temos elementos que atraem a todos, e o Andrew é muito bom em escrever letras que dialogam com as emoções das pessoas. Isso é uma coisa linda.
Por fim, em poucas palavras, como é trabalhar com o Andrew?
Andrew é um cara muito talentoso, um visionário, e tem sido uma grande inspiração para todos. Se você está na órbita dele, é um amigo leal, prestativo e solidário. Se está fora, ele não te dá muita bola. Faz sentido se considerarmos o tempo que é gasto mantendo contato com literalmente milhares de pessoas por meio das redes sociais; pessoas com as quais nunca poderemos construir um relacionamento. É debilitante para nós, para nossa saúde mental. Historicamente, a raça humana não foi feita para isso. Nossos antepassados se relacionavam com meia dúzia de pessoas. Hoje, se espera que nos relacionemos com centenas, talvez milhares. Então, sim, ele é um cara mais reservado quando se trata desse contato.
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