No fundo do poço, a única opção que temos é subir. Como poucos na história do metal brasileiro, Edu Falaschi é a prova disso. E a subida foi das mais gloriosas, coroada recentemente com o lançamento de Vera Cruz, seu primeiro álbum solo e talvez o grande lançamento nacional de 2021. Edu talvez nunca tenha dado tantas entrevistas em tão pouco tempo, mas o disco merece, e seus fãs que nunca deixaram de acreditar em seu potencial agradecem. O bate-papo a seguir rolou via Zoom. De sua casa em São Paulo, ele fala sobre fé, volta por cima, colegas de banda, planos, a remota possibilidade de uma reunião com o Angra e, às vésperas do vigésimo aniversário de Rebirth, tece um breve comentário sobre o trabalho que o apresentou para o cenário mundial. Boa leitura!
Fotos: Gustavo Maiato
Marcelo Vieira: Eu queria começar o nosso papo falando uma coisa que você disse no palco do Circo Voador na etapa carioca da turnê Temple of Shadows in Concert. “Venera o diabo? Pra mim não tem papo.” Queria falar sobre fé. Você é um sujeito de fé, religioso no seu dia a dia?
Edu Falaschi: Tenho isso como algo muito particular e não costumo comentar a respeito porque cada um é cada um, ainda mais no nosso mundo. Mas tenho a certeza de que existe algo maior e colhi provas disso. Também não costumo contar o motivo. Mas tive muitas provas. Acho que a gente tem sempre que estar ligado nisso, já algo que realmente existe, está acima da gente e influencia diretamente tudo o que a gente faz. Minha fé é minha.
Não sigo um padrão de cada religião. Agora, a gente tem uma base central em todas as religiões que é a existência de algo fora desse mundo e que nos acompanha. Isso é comum em todas as religiões. Então o que tenho em comum com todas é isso. É a certeza de que realmente existe algo, e o bem e o mal também existem, assim como as energias boas e ruins também. Isso é algo que sei que existe. Eu sei que tem. Por isso é muito bom todo mundo sempre pensar e procurar estar daquele lado que seria correto.
MV: Outro dia ao assistir ao documentário Free Britney, eu só conseguia pensar em como a imprensa brasileira fez igualzinho com você depois do Rock in Rio de 2011. Essa sua crença em algo maior foi um dos ingredientes fundamentais para essa retomada na sua carreira?
EF: Orra! Com certeza! Foi um fator que pontuou, não é nem só uma retomada, mas uma virada da maneira de se viver a vida. Mudei completamente e tive muitos sinais, consegui interpretá-los, e essa é a diferença. Conseguir interpretar o que está pairando na sua frente; nem sempre visível. Energia elétrica você não vê, também não vê o ar, mas estão aí. Foi mais ou menos isso que aconteceu. Consegui passar a captar esses fatores que estão na nossa frente, avisando-nos de muitas coisas, e a gente não vê. É mais ou menos assim.
MV: Em 2018 você lançou a “The Glory and the Sacred Truth” que além de ser meio que um test-drive pra sua nova fase, fez com que percebesse que o conteúdo dela inclui algo transcendental. Três anos depois vem o seu disco de estreia, um álbum conceitual. Só queria saber em que momento a ideia do Vera Cruz começou a fervilhar na sua cabeça, se o conceito dele veio antes das músicas ou se você primeiro fez as músicas e depois foi lapidando pra então estabelecer o fluxo narrativo.
EF: Na real, tudo veio meio que junto. Busquei falar do Brasil, da nossa história, da nossa essência, das nossas raízes, sem dar a entender que era uma aula de História. Aí criei uma base fictícia, que é a saga do Jorge, um cara iluminado, nascido com uma missão e, dentro de uma profecia, é perseguido por isso. Aí pensei em chamar o Fabio Caldeira, amigo meu, e ele desenvolveu todo o enredo, os detalhes da história.
Paralelamente a isso eu estava compondo já o instrumental, a base harmônica. Assim que ele terminou o resumo da história com todos os detalhes, fiz as letras com base nesses detalhes que criou, como falei, em cima do que bolei de início. Eu fiz o esqueleto do conceito e ele o desenvolveu. Também fiz as letras em cima para encaixar na harmonia. Foi meio que tudo junto, mas, felizmente, deu certo.
MV: Tudo no CD soa incrível. Arranjos, timbragens, performances individuais. Noto que você parece estar cantando num registro mais confortável e sem se forçar muito. Posso dizer que nesse processo todo você também se redescobriu como cantor e encontrou novas maneiras de usar a própria voz?
EF: Na verdade, fiz uma busca durante anos para resgatar a voz do Edu do Rebirth, por exemplo. Tive vários problemas e fiquei obrigado fazer um estudo, “me curar” — meu problema de refluxo não tem cura, né? — e fiz toda uma busca para resgatar essa maneira de cantar e fico feliz de poder ter isso agora, celebrando 30 anos de carreira com o vocal que a galera se identificou quando entrei no Angra, que obviamente já vinha desde o Symbols e tal. Foi basicamente um resgate do que já fazia, enfim, nada houve de novo.
MV: Você reuniu uma banda de primeira; caras tecnicamente competentes e que parecem ser muito “de boa” para trabalhar. O que torna cada um deles a escolha certa para seus postos e o que o conjunto possui como diferencial para manter tudo coeso e focado?
EF: Acho que transparência é o principal de tudo. Tudo: os anseios de cada um, a parte profissional e financeira e o papel de cada um no projeto: tudo isso tem que ser muito claro, franco, e se você tem transparência não tem problema. Isso gera união, amizade. Esse é o ponto principal de um projeto complexo: a transparência. Tudo de ruim nasce quando não há transparência. A dúvida é cruel. Prezo muito por viver a transparência em tudo.
MV: Você sente que tendo esses caras certos do seu lado fez você se sentir um artista, um compositor e até um intérprete melhor?
EF: Com certeza! Os caras são fundamentais, e não só o Vera Cruz como tudo que fiz desde 2017 é o que é, essa musicalidade, muito pelos caras, também. São gênios, os caras tocam muito, e a característica de cada um é muito forte e isso já tá impresso na música. Então com certeza dá um valor gigantesco à minha história e discografia.
MV: Sempre procuro encontrar nas letras, mesmo nas escritas sobre uma temática específica, alguns paralelos com a trajetória do artista, com o momento no qual elas foram escritas. Quem são os personagens do Vera Cruz na vida real?
EF: Não sei. Acho que o Vera Cruz é um pouco de tudo e de todos. Dentro da história há fé, traição, amor, ódio, o mal, o bem... isso é inerente à natureza humana. A gente tem tudo isso em nós. O difícil é pontuar uma pessoa ou outra. É uma história complexa que permeia essas características humanas. [Risos]
MV: Dá pra traçar um paralelo com a sua própria história?
EF: Com a de todos. Porque é uma história de luta, conquista, perda, alegria, tristeza, vitória, derrota; tem tudo isso. E a nossa vida é isso, né? Não dá pra ser vitorioso ou derrotista o tempo todo ou derrotista ou derrotado sempre. Tudo acontece. Você vive tudo isso durante a sua vida e tem que tirar o melhor pra si. Acho que a gente tem sempre que estar aprendendo com tudo, com o que é bom e com o ruim, e viver o melhor possível. Esse é o caminho.
MV: Na autobiografia Heavy Duty, K.K. Downing, ex-guitarrista do Judas Priest, afirma que uma das maiores cagadas da banda foi não fazer uma turnê tocando o Nostradamus (2008), que é um álbum conceitual, na íntegra. Quando for possível retomar os shows, tá nos planos tocar o Vera Cruz na íntegra?
EF: Muita gente pede isso, né? Acho que temos que dar um tempo para o disco. Ele acabou de ser lançado. Acho que seria meio soberbo da minha parte falar “sim, vamos tocar o disco na íntegra, ele tem essa importância”. Acho que vou esperar um pouquinho para ter esse parâmetro do que é o Vera Cruz para o fã. Tempo e cautela. Mas tudo indica que sim.
MV: O lançamento do Vera Cruz agitou o que eu chamo de “Angraverso”. Amigos vieram comentar comigo que “o Edu tentou fazer um Temple of Shadows (2004)”, ao que respondi: “Ele já fez um Temple of Shadows. Esqueceu que ele estava lá?” Imagino que a essa altura da sua vida e da sua carreira pouca coisa te incomode, mas incomoda esse tipo de resenha comparativa ou mesmo essa noção que se perpetuou de que o Temple of Shadows é uma obra-prima do Rafael Bittencourt e não do Angra?
EF: Não me incomoda, não. Acho que já passei dessa fase. Cada um pensa de um jeito, cada um tem uma opinião. Você não vai mudar. Isso vale para religião, política. A gente vê briga na internet, em todo lugar, em família, sobre posições políticas diferentes. Um argumenta, outro argumenta, e você não vai converter. O cara tem que descobrir sozinho o que quer. E se o cara acha que é isso, na cabeça dele, sobre o Temple, beleza. Fiz o que sempre fiz; esse tipo de música é meu, tem muito do meu estilo de compor. Não tenho como fazer o contrário. Para fazer algo diferente, teria que forçar. Esse tipo de coisa [pega o violão e toca dois versos de “Skies in Your Eyes”] eu pego o violão e faço; isso aqui é natural para mim. Não tenho como fugir disso.
Os speeds também; fiz “Nova Era”, fiz “Spread Your Fire”, “Angels and Demons”. Fiz um monte de música dentro do Angra e certamente fui influenciado pelo Kiko [Loureiro], pelo Rafael, e acho que eles também por mim em algum momento. De alguma forma, teve essa troca. Fiquei lá 12 anos. Doze anos é uma vida; você acaba se influenciando e os outros também. A gente aprendeu uns com os outros. Ninguém fez nada sozinho. Todo mundo tem uma importância em tudo que se faz em grupo. Se os caras querem achar isso, tudo bem.
Fiz o que eu sempre fiz, desde o Symbols, desde o Mitrium. Claro que com sua história, sua experiência, você vai agregando outras coisas, vai melhorando. É normal. Gosto muito de compor no violão, no piano, até às vezes na guitarra. Mas como falei: algo natural. Se aceitarem, ótimo, porque é de verdade. Se não, tudo bem também.
MV: Ainda é possível inovar, musicalmente falando no power metal ou chegamos a um ponto em que a inovação nele fica restrita mais ao fundo temático dos álbuns e a eventuais participações especiais, como as do Max Cavalera e da Elba Ramalho no Vera Cruz?
EF: Acho que o ser humano é muito inteligente. Alguém em cada geração que pinta pode pintar com uma ideia, uma novidade. Tenho 30 anos de carreira, um estilo consolidado, um DNA de compositor. Acho que seria um erro querer tanto tempo depois fazer um disco de reggae, sei lá. [Risos] É algo que não está no meu DNA. Esse papel de inovar cabe à geração nova, pois ela tá aí para isso. Acho que dá, sim. Música não tem que ter limites, não.
MV: No Brasil o Vera Cruz teve edição em box limitado, em digibook e agora em jewel case. O disco saiu também no Japão, na Coreia do Sul... Você tem números de como o disco está se saindo? Entrou nas paradas japonesas, mas em termos de vendagem de peças físicas, você tem um controle de como isso tá rolando?
EF: Não sei, porque essa contagem parece que é feita de seis em seis meses, se não me engano. O disco saiu em maio. Obviamente não será um número do passado, quando se vendiam 50, 100 mil cópias; o que não vai existir mais. Mas temos um número expressivo no Japão. Espero poder receber um bom número em breve para divulgar. Agora o streaming sei que está indo bem. Temos dois milhões só no Spotify. O número é importante; como marco, é muito legal. Mas hoje em dia a gente está focado mais na qualidade do que na quantidade. Por isso que tem esses produtos tão bacanas. A gente sabe que não vai vender 10, 15, 20 mil cópias, mas sim o bastante, e tem fã que gosta e que merece. Então eu gosto de dar esse produto mais classudo para ele.
MV: As gravadoras nacionais parecem ter sacado que tá rolando uma demanda por relançamentos de metal dos anos 80, 90 e 2000, vide as reedições de Helloween, Stratovarius e mesmo do Angra. Dito isso, está nos seus planos recolocar no mercado suas coisas anteriores ao Rebirth?
EF: Vai ter algo do Almah [N.E.: a entrevista foi realizada antes do anúncio oficial dos relançamentos do Almah pela Shinigami Records], e talvez o Symbols. O Mitrium acho difícil porque era underground demais, gravação muito ruim, mixagem e masterização tosquíssimas. Não sei se vale a pena relançar isso, mas o Symbols valeria. Estamos vendo. Pode ser. Agora o Almah vai ter.
MV: Ainda usando o Helloween como parâmetro, acabou de sair o disco que consolida essa formação Megazord com o Michael Kiske e o Kai Hansen. Você chegou a ouvir?
EF: Com certeza! Achei genial, sensacional. Kai Hansen é muito foda, né? Michael Kiske também. Adoro os caras, são ídolos, cresci ouvindo; ídolos de muita gente e meus com certeza.
MV: Ao se ter em vista a repercussão, todos os frutos que podem ser colhidos com uma reunião, como a do Helloween, e até dando o exemplo da volta do Slash e do Duff McKagan para o Guns N’ Roses, se todas as arestas forem devidamente aparadas — embora eu ache que essa possibilidade é remota no momento —, você toparia fazer parte de um “super Angra”?
EF: Não sei. Nunca foi pensado isso. A gente já teve momentos de conversar, mas acho bem difícil. Mas nada é impossível, e nunca gosto de falar que não, que nunca porque depois acontece e você acaba mordendo a língua. Eu nem penso nisso porque estou focado na minha carreira solo. Posso dizer para você que [uma reunião] não tem por quê; existe um pra quê, sempre existe. O porquê é diferente, e tem que existir. Se um dia existir, a gente pensa em alguma coisa.
MV: Mas esse é o tipo de coisa que, até que aconteça ou não seja mais possível de acontecer, os fãs sempre vão fantasiar, né?
EF: Não tem problema nenhum. O que eu posso oferecer é sempre a minha clareza em tudo. O fã já sabe disso, que eu sempre falo a real, nunca dou. Não é meu estilo. Falo a verdade.
MV: Agora que as coisas tão voltando ao normal, ao menos em alguns países, você já está agendando turnê para promover o Vera Cruz fora do Brasil?
EF: Temos planos, mas já conversei com meu empresário que este ano não vou fazer nada. Acho meio cedo. Poderia ir tocar na Europa ainda este ano ou Japão se abrir, mas acho este ano um pouco cedo ainda. Esperamos até agora, o que são mais seis meses? Ano que vem a gente põe o pé na estrada. Já até falei pra minha esposa: “Te vejo em 2024, 2025”. [Risos] Também temos mais tempo para montar uma turnê bacana. Essa pandemia foi muito séria. Morreram centenas de milhares de pessoas. Fico meio cabreiro. Melhor recuperar um pouquinho. Aí ano que vem, com certeza, a gente vai pra estrada.
MV: Você já tomou a vacina?
EF: Já. A primeira dose. Falta a outra.
MV: Já que você vai ficar em casa até o fim do ano, o que a divulgação do Vera Cruz vai incluir? Tá nos planos fazer uma live, lançar videoclipe...?
EF: Estávamos filmando o videoclipe. Paramos devido ao novo aumento de casos de Covid-19. Espero que em agosto possamos lançar o videoclipe. Não posso falar ainda de qual música, mas vai ficar lindo demais. Aí vamos continuar com a divulgação dos trabalhos em si. Pro ano que vem, a tour. Devemos anunciar este ano ainda. Há outros projetos e lançamentos inerentes ao Vera Cruz que não posso falar, mas o ano está recheado, e a galera pode esperar que vem bastante coisa legal.
MV: O ano de 2021 marca o vigésimo aniversário do Rebirth. Galera headbanger de trinta e poucos anos pode dizer que esse é um dos discos da vida, e a cada nova ouvida percebo o quanto ele envelheceu bem. Eu queria que você divagasse um pouco a respeito.
EF: Rebirth é um disco importante demais. Ele me colocou na vitrine do mundo. Até então eu estava com o Symbols num patamar mais underground e esse disco me projetou. É com ele que concretizei e realizei um sonho. Até então era um sonho viver de música, e aquele disco consolidou isso. Ele é fenomenal e muito importante. Jamais vou esquecer. Tenho um carinho muito grande por ele e pelo momento. Por tudo que ele representa.
MV: Minha última pergunta tem relação com nosso primeiro encontro, em 2009, quando eu era DJ de um bar de rock no Rio de Janeiro e você estava de passagem. Você pediu para eu tocar um som do TNT. Para desespero dos “troo”, que bandas similares de hard rock eu encontraria na sua playlist ou na sua coleção?
EF: Tenho vários ídolos no hard rock. Meu Spotify é bem variado, mas eu tenho desde Cinderella, Warrant, Winger, Def Leppard, o próprio TNT. Tony Harnell [vocalista do TNT] é, pra mim, um dos caras mais fodas de vocal que tem. De hard tem uma caralhada de banda de que eu gosto. Mas escuto de tudo. Dentro do metal tenho um leque amplo e fora do metal também. Não tenho muito preconceito. Se é bom, se a melodia é legal, eu abraço.
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