ENTREVISTA: Crispim Skullcrusher (Scrupulous) detona dogmas e doutrinas


Duas demos foi tudo o que o Scrupulous deixou registrado em sua primeira encarnação (1992-1996). Vinte e três anos se passariam até que a banda, natural de Itabuna (BA), decidisse retomar as atividades e lançar seu primeiro álbum completo. Intitulado “Ostia and Genocide”, o trabalho, distribuído pelo selo Heavy Metal Rock, é um tributo impiedoso ao death metal das antigas. A modernidade fica restrita ao que é vociferado; versos atualíssimos, de forte crítica social e individual. Convidei o vocalista Crispim Skullcrusher, também responsável pelas letras, para um bate-papo de alto nível entrópico e sem papas na língua. Boa leitura!


Fotos: Divulgação


Marcelo Vieira: O Scrupulous foi formado num ano divisor de águas para o death metal. O press-release de “Ostia and Genocide” cita quatro clássicos indiscutíveis do estilo: “Legion” (Deicide), “The End of Complete” (Obituary), “Tomb of the Mutilated” (Cannibal Corpse) e “Utopia Is Banished” (Napalm Death). Deles, qual você considera o mais importante e, por extensão, o mais influente na receita sonora do Scrupulous? E que outros discos, anteriores a 1992, você incluiria na lista de influências da banda?  

Crispim Skullcrusher: O Scrupulous, no seu início, não tinha ideia de uma vertente a seguir; era tudo muito bagunçado. Tínhamos muitas influências e isso fez com que as primeiras composições soassem confusas. A nossa primeira demo tape, “Souls in Agony”, mostrava um Scrupulous inseguro, mas nervoso e cheio de atitude, pois o que queríamos era fazer um som rápido. E apesar das muitas influências, procurávamos uma identidade. 

Só a partir da nossa segunda demo tape, “Shadows Of Pain”, nós fomos criando e trilhando o caminho ao death metal. Então as bandas citadas com seus respectivos discos vieram, sim, enriquecer ainda mais as influências do Scrupulous. É complicado citar uma só, mas lhe garanto que fora dos nomes acima abordados, o “Altars of Madness” (Morbid Angel), “Seven Churches” (Possessed), “INRI”, “Rotting” e “The Laws of Scourge” (Sarcófago) e “Blood Fire Death” (Bathory) são nossos “livros” de cabeceira.


MV: Embora houvesse material das antigas a ser resgatado, vocês optaram por compor o primeiro disco do zero. Por quê?  

CS: Posso lhe garantir que o material antigo é tão poderoso quanto o atual. Estávamos naquela época muito à frente do nosso tempo, sem falsa modéstia. Mas o que procuramos hoje é um Scrupulous com a cara dos novos membros, sem perder a característica do Scrupulous dos tempos antigos. E também serviu de laboratório aos mesmos!


MV: Gostaria que você fizesse uma análise comparativa de como era o underground antes do hiato da banda e como é agora que vocês retomaram as atividades. Muito se fala em desunião, más práticas, competição, sabotagem etc. Houve melhora em algum aspecto? Qual/quais? Algum piorou? O que ainda precisa melhorar para que o underground brasileiro seja mais sadio, sobretudo para as bandas autorais? 

CS: O underground sempre foi muito competitivo, e naquela época não era diferente. Nós somos uma banda do interior da Bahia, e tudo sempre foi muito difícil em comparação aos grandes centros. Sabíamos do nosso potencial, e muitas vezes fomos limados em eventos, mas também nos foram dadas oportunidades para mostrar o nosso trabalho. 

Acredito que a desunião veio mais de pessoas de fora do contexto das bandas. O underground nacional cresceu e podemos ver grandes eventos muito bem elaborados, trabalhos muito bem lançados com uma qualidade que ficamos orgulhosos da nossa cena brazuca. O underground nacional tomou muita porrada e hoje, apesar das grandes dificuldades que ainda enfrentamos, levantamos nossa cena com orgulho!



MV: A formação atual conta com um guitarrista de 21 anos, que é filho do Emerson Mozart, que tocou com vocês no passado. Queria saber como se deu essa junção: ao abordar o cara, ele disse não, mas indicou o próprio filho? Como foi isso? Até que ponto a presença de um músico tão mais jovem ajudou a banda toda a “rejuvenescer”? 

CS: O Emerson foi membro do Scrupulous de 1993 a 1995. Seu filho, Arthur “Azaghothinho” Mozart, é um grande guitarrista que trouxe muitas ideias e amadurecimento ao som do Scrupulous. Tenho o Arthur como um sobrinho; falo que sou seu tio na banda, mas ao mesmo tempo um irmão. Vi o Arthur nascer, e a felicidade do seu pai em empunhar o seu herdeiro para nós na época. Seu pai trocando as fraldas todas cagadas, meio sem jeito, não poderia imaginar que aquele pequeno um dia comandaria as sete cordas do Scrupulous. Quando o convidei para ser membro do Scrupulous ele aceitou de imediato: “Quero assumir o posto que um dia foi do meu pai”. Arthur é igual ao pai, sedento por ideias e de uma criação musical ímpar, muitas vezes temos que segurá-lo. Ali jorra ideias como lava de vulcão. O Scrupulous só teve a ganhar com isso.


MV: Está implícita no título “Ostia and Genocide” a crítica às religiões organizadas, em especial às cristãs. Quando você canta “I believed once” em “Ius Divinum Schizo/Crown of Rubble”, sou levado a acreditar que houve um dia em que você viveu conforme diz o Evangelho; ou, pelo menos, tentaram fazer com que você assim vivesse. O tom é de arrependimento, revolta. Faz sentido essa análise?

CS: Não, uma vez que a estrofe num todo não se refere à minha pessoa, mas sim da cobrança dos anjos caídos em cima de Lúcifer, sendo que ele cria também suas próprias leis. “Ius Divinum”, dentro do seu conjunto de regras, cria a sua própria legislação canônica, fazendo com que as pessoas sigam diretrizes que as escravizam. O “Schizo” veio dessa esquizofrenia em que as pessoas, por estarem dopadas por sua própria ignorância, seguem esse preceito. E “Crown Of Rubble”, a todo reino cujos seguimentos, dogmas e pensamentos desvanecem, caem como escombros. Acredito que ninguém nasce com o tridente do “cramunhão” na mão! [Risos.]


MV: Na faixa-título tem um verso que diz “Face the truth or finance the scam”. Impossível não pensar nos cultos pentecostais, nos Valdemiros Santiagos e Silas Malafaias da vida. Vivemos num momento em que política e religião estão caminhando lado a lado, em total desacordo com o preceito de estado laico que a constituição prevê. Para você, é tarde demais para vislumbrarmos uma separação desses dois mundos ou a religião se entranhou de tal modo que dificilmente o Brasil será um país mais justo e tolerante às diferenças? 

CS: Não estamos abordando apenas líderes religiosos e políticos, mas também toda uma sociedade que vive culminada nas discordâncias de pensamentos em que muitas vezes não se respeitam as diferenças, sejam elas de qualquer âmbito. Política e religião, desde os primórdios, sempre andaram lado a lado e são diretrizes que escravizam.



MV: Benjamin Franklin disse uma vez que as únicas certezas da vida são a morte e o imposto. Como podemos driblar essa certeza fatalista e em que aspectos você acredita que ser fiel a uma religião pode restringir os horizontes do ser humano? 

CS: Não compartilho com essa opinião. Temos diversas certezas e incertezas na vida. Seguir pensamentos de outros nos faz estar paralisados em viés incertos e de natureza retrógada. 


MV: Há nas letras uma predileção por palavras incomuns, estruturas que parecem herdadas da poesia de grandes autores. Você se considera um leitor? Que autores toma como referência na hora de traduzir a sua raiva em palavras? 

CS: Sempre fui uma pessoa adepta a leitura e respeitei todo e qualquer tipo de pensamento, seja ele contrário ou não aos meus ideais. Dentre esses conceitos, aprendi a observar o mundo com os meus próprios olhos, tirar análises de minhas vivências sem comparativos a qualquer outro tipo de raciocínio ou pensamento. 

Palavras incomuns vêm de um estudo gramatical simplesmente, não tendo conceitos ou preceitos de estar como papagaio repetindo frases ou estrofes de pensadores; algo que é muito comum hoje em dia. Sem querer soar arrogante, mas me identifico com meus próprios pensamentos. Respeito aqueles que pensam diferente, mas enxergo o mundo e suas adversidades com meus próprios olhos, tendo uma linha tênue de raciocínio e criando os meus próprios conceitos, o que não é nada difícil.



MV: Revolta você ver que o meio do metal está tão repleto de pessoas que duvidam da ciência em total descaso com o próximo e ainda sob o risco de pagar com a própria vida?  

CS: O mundo do metal entrou numa armadilha com essa guerra generalizada de aficionados por políticos defendendo bandeiras ideológicas de ambos os lados. Ver pessoas se digladiando por vieses partidários é simplesmente um tapa na cara do metal. O heavy metal nunca apoiou bandeiras ou simplesmente ideologias de cunho político; muito pelo contrário: sempre focou na liberdade e em quebrar as correntes de pensadores de qualquer lado, que com suas ideias só tentam separar e escravizar as mentes dos desavisados. 

Direita, esquerda, centro: é tudo uma bosta só e te levam à doutrinação e à alienação. O maior erro foi trazer isso para o metal. Muitos confundem falar das mazelas do mundo e apontar os erros dos tais governantes com tomar partido a favor desse ou daquele político. O que mais vemos é uma bosta cobrindo outra. Tínhamos que nos unir contra toda e qualquer tirania de ambos os lados. O heavy metal é independente de tudo isso aí que está rolando.


MV: A capa de “Ostia and Genocide” ilustra o que o mundo estava passando no momento inicial da pandemia. Agora, que estamos na milésima onda, na milionésima variante do coronavírus, que atualizações você julgaria necessárias para a ilustração? 

CS: Na verdade essa capa veio dizer que há muito tempo sofremos com essas catástrofes; seja o coronavírus ou qualquer outra que já tenha cruzado o caminho da humanidade. Demostra que eles estão ali de mãos dadas; igreja, política e a própria ciência que, por sua vez, é levada a se submeter a essa corja toda. Mentem na nossa cara e ficamos como cães adestrados reféns de pobres ideologias que usam de lobotomia. O que mais se tem hoje são cientistas e experts em política. Todo mundo hoje tem todos os parágrafos da constituição na ponta da língua sem saber um nada. Se fosse ilustrar a realidade de hoje, faltaria espaço na capa de “Ostia and Genocide”!

 

MV: É difícil fazer planos quando a qualquer momento tudo pode fechar as portas novamente. Mas caso o prognóstico de melhora se confirme, quais os planos para o Scrupulous para 2022?

CS: Com certeza, fazer planos hoje com toda essa incógnita é muito complicado. Estamos de mãos amarradas por nós mesmos. As pessoas ligaram o “foda-se” e não querem mais saber de se cuidar ou até mesmo de seguir os protocolos de segurança. Há uma hipocrisia pairando no ar que é como se diz: faça o que eu digo e não faça o que eu faço. As pessoas cansaram disso tudo e muitos sofrem com a negligência do outro. 

Tínhamos alguns eventos marcados para o início de 2022, mas devido à alta pandêmica tudo foi cancelado. Estamos nessa linha tênue, infelizmente! Planos temos muitos, mas no momento temos que esperar o mundo reagir, então vamos focar na divulgação do disco e fazer com que ele chegue o mais longe possível; fazer com que as pessoas entendam a nossa música e a nossa mensagem. Metalheads, acordem, vamos encarar a verdade. Não financiem a farsa! Valeu.



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