ENTREVISTA: Grutle Kjellson fala sobre a evolução do Enslaved, mitologia nórdica e retorno ao Brasil
O Enslaved está pronto para retornar ao Brasil em novembro, trazendo consigo sua aclamada mistura de black metal e rock progressivo. Com mais de três décadas de carreira, o grupo liderado pelo vocalista e baixista Grutle Kjellson continua a desafiar as convenções do gênero, sempre buscando novas formas de se reinventar. Seu mais recente álbum, Heimdal, explora temas da mitologia nórdica com uma abordagem musical e lírica que se distancia de trabalhos anteriores, refletindo o desejo constante de evolução artística do quinteto completado por Ivar Bjørnson (guitarra), Arve Isdal (guitarra), Håkon Vinje (vocais e teclados) e Iver Sandøy (bateria).
Na entrevista que você está prestes a ler, Kjellson destacou que a banda evita se prender a fórmulas pré-estabelecidas. Para ele, criar o mesmo álbum repetidamente seria desinteressante tanto para o Enslaved quanto para os fãs. Com Heimdal, a banda não só explora conceitos antigos da mitologia, como também avança em sua sonoridade ao incorporar influências do krautrock e do rock progressivo dos anos 1970, sem perder suas raízes no metal extremo.
Além disso, o Enslaved promete um show memorável em solo nacional, apesar das inevitáveis altas temperaturas que Kjellson já antecipa com bom humor. Para quem acompanha a trajetória da banda, essa será uma oportunidade única de vivenciar ao vivo a força de um grupo que, após quase 35 anos de carreira, ainda se mantém relevante e inovador no cenário global do metal.
Por Marcelo Vieira
Fotos: facebook.com/enslaved
- Versão em vídeo (sem legendas) disponível em https://youtu.be/18kxQ4IeYQI
Heimdal é mais um capítulo na longa jornada do Enslaved explorando a mitologia nórdica. Como ele se diferencia dos álbuns anteriores em termos de estilo musical e abordagem lírica?
Bem, ele se diferencia no sentido de que nosso principal objetivo é nunca nos repetirmos, seguir nossos próprios passos. Mas não há nenhuma decisão consciente de seguir uma direção musical específica. Isso não é um objetivo em si. É mais uma questão de expandir, explorar e simplesmente tentar fazer a nossa música favorita no momento. Eu acho que, se tivermos um plano fixo de criar algo semelhante a outra coisa, isso resultaria em uma música muito genérica e rígida. Preferimos nos desafiar e criar algo que ainda não fizemos. De um jeito ou de outro, desde que gostemos, isso é o mais importante. Enquanto acharmos prazeroso, seguimos em frente. Não podemos controlar o que os fãs ou o público irão pensar sobre isso, então isso vem em segundo plano. Nunca poderíamos fazer o mesmo álbum repetidamente. Já não existem bandas suficientes que fazem isso? Então, tentamos evoluir à nossa própria maneira.
O mesmo vale para as letras. As letras nascem de algo ou de um conceito que queremos explorar mais a fundo, investigar. Para mim, é como virar pedras, por assim dizer. Gostamos de escrever sobre coisas que conhecemos muito pouco. Então é como um processo de aprendizado. Isso aconteceu também no último álbum, Utgård (2020). Ambos [Utgård e Heimdal] têm conceitos vagos, amplos, e existem poucas fontes escritas sobre eles. Por isso, há muitas suposições, muitas discussões. Conversamos bastante com acadêmicos, fazendo perguntas nerds, e usamos outras fontes, como petróglifos e arqueologia. A arqueologia nos leva a desenvolver nossas próprias teorias e hipóteses. Então é uma jornada interessante, sem grandes respostas, na verdade, só mais perguntas. E isso é fascinante. Nós tendemos a escrever sobre conceitos que acabam sendo talvez ainda mais obscuros que um filme de David Lynch. Mas não se trata de chegar a uma conclusão final. Isso tornaria tudo muito desinteressante. Gostamos que o ouvinte tenha tantas perguntas quanto respostas. Isso torna tudo mais interessante.
Quando se trata de traduzir o conceito abstrato de Heimdal para a música e as letras do álbum, a banda segue alguma dinâmica específica para criar canções tão complexas e detalhadas?
Eu, geralmente, gosto de ouvir os esboços que recebo do Ivar enquanto termino as minhas letras, deixando que suas ideias e demos me inspirem. É como colocar a última peça do quebra-cabeça. Esse é um jeito que eu costumo fazer. Depois, vou tentando descobrir o que cantar sobre as diferentes partes. Faço uma versão super rascunhada e, em seguida, vou para Bergen, onde os outros membros da banda moram. Eu e o tecladista, que também é um dos vocalistas da banda, nos reunimos para fazer os arranjos vocais, finalizando-os e gravando demos vocais. A partir daí, é mais uma questão de ajustes menores. Costumamos ter pelo menos 90% dos arranjos vocais prontos antes das gravações. Basicamente, é assim que trabalhamos.
Como você pessoalmente interpreta a figura de Heimdal e seu papel na mitologia nórdica?
O mais interessante é que, quando começamos a explorar o conceito de Heimdal em um estágio bem inicial, como suspeitávamos, encontramos vestígios dele. Provavelmente, ele foi um dos deuses ou divindades originais e era adorado de alguma forma muito antes de algo chamado mitologia nórdica ou Odinismo sequer existir. Quem sabe há quanto tempo ele é venerado nesta região? Provavelmente desde a Idade do Bronze, porque existem petróglifos que sugerem fortemente que se trata do mesmo personagem. Talvez sob outro nome, mas é definitivamente Heimdal. Usamos alguns desses símbolos na arte do álbum. Existem também fragmentos e indícios nos textos da mitologia nórdica que sugerem várias direções, mas indicam fortemente que essa figura é anterior à mitologia nórdica. Isso desperta muito interesse. Houve muita pesquisa, e foi quase como uma “arqueologia bíblica”, mas não exatamente bíblica… Não sei se podemos chamar assim, mas algo como “arqueologia bibliotecária”. Claro, ligamos para acadêmicos e professores, às vezes os incomodando durante o expediente para discutir algo fora de seus horários de trabalho. Foi um processo muito legal.
Como um dos membros fundadores do Enslaved, como seu papel como vocalista e baixista evoluiu junto com o estilo musical da banda, que passou do black metal raiz para um som mais progressivo?
Isso evoluiu, mais ou menos, junto com o gosto musical. Ou melhor, com a ampliação dos horizontes musicais. Sempre ouvimos músicas variadas. Uma das primeiras fontes de inspiração para o primeiro álbum foi a música eletrônica alemã; o Krautrock de bandas como Popol Vuh, Kraftwerk, Karl Schulze, Tandem e outras. Então, essas influências fora do metal sempre estiveram presentes. Mais tarde, a partir de meados dos anos 1990, começamos a ouvir bandas como King Crimson, Pink Floyd, Rush, entre outras do rock progressivo dos anos 1970. Isso nos apresentou estruturas mais complexas, diferentes tanto do metal clássico quanto do metal extremo mais primitivo, com o qual começamos. Ainda ouvimos essas bandas de metal. Somos muito fãs de Bathory, Autopsy, Carcass, Destruction, Sodom. Todas essas bandas ainda fazem parte da nossa base. Mas gostamos de incorporar todos os tipos de influências. Para nós, só existem dois tipos de música: música ruim e música boa. Se quisermos experimentar algo, não colocamos limites. Apenas dizemos: “vamos lá, vamos fazer”. Acho que esse sempre foi o etos do Enslaved, e é o que nos dá a liberdade artística para fazer isso. Todo mundo já sabe que não vamos seguir as regras de ninguém. E isso é bem legal.
O que você acha do estado atual do black metal no mundo? Há bandas novas que merecem ser ouvidas?
Tenho que ser completamente honesto com você. Eu não faço a menor ideia. Pode me perguntar sobre rock progressivo sueco dos anos 1970 em vez disso? Desculpa, eu realmente não sei. [Risos.]
Este ano marca o 20º aniversário do Isa (2004). Olhando para trás, como você avalia a importância desse álbum na trajetória do Enslaved e como ele influenciou a direção musical que vocês seguiram nos álbuns subsequentes?
Isa foi o primeiro álbum da banda como um quinteto. Tínhamos um novo baterista e um novo tecladista. E pela primeira vez, aproveitamos o fato de ter um tecladista. Isso nos permitiu expandir muito mais nosso horizonte musical. Pudemos fazer arranjos mais intrincados e, basicamente, criar músicas mais interessantes, algo que queríamos fazer há muito tempo, mas sempre tivemos recursos limitados. Desde o quarto álbum, nos apoiávamos muito em dois guitarristas — um solo e um base. Adicionar um tecladista foi um alívio, porque nos permitiu explorar ainda mais as direções que queríamos seguir. Isa foi nosso maior sucesso comercial desde Frost (1994). Nos deu um novo começo. Voltamos a fazer muitas turnês, pelo menos pela Europa, pela primeira vez em muitos anos. Esse foi um dos grandes marcos da nossa carreira. Não consigo acreditar que já se passaram 20 anos. É uma loucura.
Isa continua sendo um álbum muito querido pelos fãs do Enslaved, mesmo duas décadas após seu lançamento. Como você explica essa longevidade e esse impacto duradouro na comunidade do metal?
“Isa”, a faixa-título, é uma das músicas que… Eu me lembro que tivemos alguns shows online durante a pandemia. Para um desses shows, fizemos um set votado pelos fãs. Achamos que ninguém escolheria “Isa”. Pensamos: “Tocamos essa música por quase 20 anos, as pessoas já devem estar cansadas dela”. Mas, claro, “Isa” foi uma das mais votadas. E eu fiquei tipo: “Ok, parece que é uma daquelas músicas que fica grudada”. Não chega a ser como “Ace of Spades” do Motörhead, nem perto. Mas é uma daquelas que as pessoas pedem repetidamente. E em quase todos os shows, temos que tocá-la. Tentamos deixá-la de fora algumas vezes, porque já estávamos um pouco… Não diria cansados, mas seria bom tocar outra coisa de vez em quando. Mas aí começaram a reclamar. Então, definitivamente, é uma das músicas que as pessoas querem ouvir. E eu pensei: “Ok, justo. É uma música razoavelmente boa”.
No documentário Metal: A Headbanger’s Journey, você compartilhou sua opinião sobre as queimadas de igrejas na Noruega, meio que defendendo-as. Você poderia elaborar sua perspectiva sobre o papel do cristianismo na história e como isso pode ter influenciado sua visão sobre esses incêndios criminosos?
Bem, o cristianismo, antes de mais nada, quando chegou à Europa, foi adaptado pelas cortes reais, pelos reis e coisas assim. Foi mais um fator político do que uma religião. Você pode ver que a maioria das religiões mais antigas se misturou e permaneceu por um bom tempo após a introdução do cristianismo. De muitas maneiras, adotar o cristianismo foi o caminho mais fácil para as pessoas, até mesmo no norte, na Noruega, Suécia e Dinamarca, que aceitaram o cristianismo muito antes do que a Noruega e a Suécia. Obviamente, porque estavam mais próximas de reinos cristãos como a França e os reinos germânicos. Hoje seria a Alemanha. E eles faziam parte do continente, então, obviamente, se cristianizaram. Decidiram que era uma boa ideia para formar alianças serem cristãos.
Desde então, o cristianismo tem sido uma espécie de movimento político podre ao redor do mundo, mais do que algo espiritual. E tenho certeza de que, se você investigar, algumas leis eclesiásticas e coisas assim trouxeram benefícios para a sociedade. Por exemplo, os impostos da igreja, especialmente na Escandinávia, resultaram no desenvolvimento de estradas, pontes, infraestrutura, essas coisas. Mas não foi por causa da religião, foi por causa do sistema que a religião trouxe. Então, há prós e contras. Mas, em um nível humano, eu não… Acho a ideia de monoteísmo e obediência a um único Deus bem tola. Porque, quero dizer, os seres humanos, a mente humana, são muito mais avançados do que isso. É tão fantasioso quanto qualquer outra coisa. E, claro, eles adaptaram tudo — todos os feriados e tudo mais. O cristianismo é uma adaptação. A Bíblia é uma adaptação. E todos os feriados que eles adaptaram. Concordaram com os cânones e nas reuniões em Nicéia em 397, e a divisão das outras igrejas católicas. É tudo muito interessante, mas… Enfim, esses são alguns fragmentos do que posso dizer sobre o cristianismo.
Em 2005, Dave Mustaine pediu que o Rotting Christ fosse removido de um festival onde o Megadeth iria tocar por causa do conteúdo anticristão de suas letras. O Enslaved já esteve em uma situação parecida?
Não, acho que não. Mas, quero dizer, se as pessoas e empresas… Se elas entendessem nossas letras, provavelmente estaríamos… Acho que como elas são um pouco estranhas e metafóricas, não é fácil identificar exatamente o que queríamos dizer com elas. Então, acho que passamos despercebidos.
Esta será a terceira vez do Enslaved no Brasil. Como é tocar aqui novamente?
Já faz um tempo. Cinco anos. Então, em novembro… vai estar quente, né? Vou morrer. Não gosto muito de calor. Mas estou ansioso pelo churrasco. A carne é muito boa. Gosto das churrascarias daí. Comida boa.
O que os fãs brasileiros podem esperar do show? Há alguma surpresa especial planejada?
Se não morrermos de calor, será uma apresentação energética. Uma injeção de ânimo, espero. Vai ser um bom show de rock ‘n’ roll. Feito por um cara velho de cabelo comprido e outros sem cabelo. Rock de tiozão. [Risos.]
Para encerrarmos, quais são os planos futuros para o Enslaved? Há algum objetivo ou projeto específico que você gostaria de seguir?
Bem, é difícil dizer. Com quase 35 anos de carreira, ainda temos algum objetivo? Vamos dar um passo de cada vez. Gostaria de fazer pelo menos mais um grande álbum. Acho que estou pronto para isso. Vamos ver o que acontece depois. Quero dizer, não estamos ficando mais jovens. Acho que não estaremos por aí em 20 anos. Não acho que vou viajar pelo mundo gritando aos 70 anos. Isso seria ridículo. Então, sim, alguns outros grandes álbuns. Esse seria meu objetivo pessoal, pelo menos.
O Enslaved se apresenta no Fabrique Club, em São Paulo (SP), no dia 14 de novembro. Ingressos à venda no local ou no site FasTix.
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